quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

CINEMA

HQ’s, storyboards, arte seqüencial, cinema: quadrinhos chegam à maturidade na telona

Por Erick Vizoki
Os efeitos especiais digitais atingiram um nível tal de perfeccionismo, que obras literárias que eram consideradas “inadaptáveis” para o cinema estão invadindo as salas escuras às pencas.
Há uma história em que os Beatles, em 1968, teriam procurado o cineasta Stanley Kubrick, então envolvido com a divulgação de “2001: Uma Odisséia no Espaço”, para propor a adaptação do livro “O Senhor dos Anéis”, lançado em 1955, para o cinema. Os próprios Fab Four fariam os papéis principais.
Reza a lenda que Kubrick teria recusado a proposta, alegando que “O Senhor dos Anéis” era “infilmável”. Outra versão dá conta de que os direitos para adaptação cinematográfica já tinham sido negociados.
Histórias à parte, o fato é que obras épicas e fantásticas estão chegando aos cinemas todos os anos com efeitos visuais de tirar o fôlego.
Outro exemplo de adaptação bem sucedida é “Harry Potter”. Sem os avanços tecnológicos da computação gráfica, provavelmente a saga do bruxinho seria uma produção medíocre.
Mas, fantasia por fantasia, um novo filão foi descoberto e está batendo recordes consecutivos de bilheteria: as HQ’s (Histórias em Quadrinhos). A Marvel Comics, por exemplo, criou uma divisão de cinema somente para adaptar seus clássicos personagens para a sétima arte.
De certo modo, as duas formas de arte têm muito em comum. No processo de produção de um filme, por exemplo, há um elemento essencial: o storyboard. O que é? Nada mais do que um roteiro ilustrado, uma espécie de HQ produzida por um profissional que desenha as cenas a partir do roteiro adaptado para uma melhor visualização de como ficariam as cenas finais, já filmadas.
As HQ’s são também chamadas de arte seqüencial, termo cunhado por um dos mais geniais quadrinistas de todos os tempos, Will Eisner. Esse termo bem poderia definir tecnicamente um filme de cinema. Afinal, um filme não passa de uma sequência de fotogramas que criam a ilusão de movimento, recurso muito usado nos quadrinhos, forma de arte, aliás, bem mais antiga que o cinema.


The Spirit

Pois bem, após esta breve introdução, falemos sobre duas novas produções cinematográficas baseadas em HQ’s, com estréias previstas para o primeiro semestre de 2009.
A primeira delas parece sugerir a fusão definitiva dessas duas formas de arte tão cultuadas. Trata-se da versão cinematográfica do clássico “The Spirit”, genial criação do já citado quadrinista norte-americano Will Eisner, falecido em 2005.
Assim como “O Senhor dos Anéis”, “The Spirit” não é de fácil adaptação. Mas, nesse caso, a dificuldade não está nos efeitos visuais, e sim na própria concepção do personagem e do universo a sua volta.
Eisner baseou sua criação nos cult movies dos anos 30 e no cinema expressionista alemão. Até aí, nada demais.
Acontece que “The Spirit” é um clássico absoluto no mundo das HQ’s e, para os quadrinhófilos de plantão, qualquer desvirtuamento na criação original pode ser considerado um sacrilégio ou um pecado mortal, o que seria suficiente para condenar à fogueira o responsável por tal heresia.
Para alívio dos fãs mais ortodoxos do justiceiro mascarado da fictícia Central City, justamente um dos mais cultuados quadrinistas da atualidade se encarregou da façanha: Frank Miller. Além de ter na bagagem diversos êxitos como a reformulação de personagens como o Demolidor e o Batman (a minissérie “O Cavaleiro das Trevas” serviu como referência ao longa de 2008 do Homem-Morcego) e a produção de obras já antológicas como “Ronin” e Grapihic Novels com o Demolidor e Elektra, Miller já teve obras suas adaptadas para o cinema com alto grau de fidelidade, caso das séries “300” e “Sin City”.
Aliás, o quadrinista norte-americano de 51 anos não é um novato em cinema.
Em 1990 foi o roteirista de “Robocop 2”. Acompanhou de perto a produção e filmagem de “300”, dirigido por Zack Snyder.
Finalmente, em 2005, co-dirigiu, ao lado dos pesos-pesados Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a adaptação de sua “Sin City”.
Fã confesso de Will Eisner, a impressão que fica é de que Miller esteve se preparando todo esse tempo para assumir a direção de “The Spirit”, que também roteirizou, como uma espécie de estágio em cinema.
Assim, as duas artes finalmente se aproximam e se fundem. O visual gótico, expressionista e preto e branco dos quadrinhos de Will Eisner, um dos grandes mestres do claro-escuro, parece estar bem representado no filme dirigido pelo criador de “Elektra”. Pelo menos os trailers divulgados mostram isso.
Os efeitos e a fotografia lembram bastante “Sin City”, o filme. O personagem The Spirit (alter-ego do ex-policial Denny Colt, dado como morto) surge para o espectador quase em preto e branco, destacando-se sua gravata exageradamente vermelha.
As nuances de fotografia, os ângulos e os figurinos remetem quase com precisão à arte de Eisner. Apesar das semelhanças com “Sin City”, Frank Miller já declarou por diversas vezes que não queria comparações.
A estréia mundial, prevista para 6 de fevereiro, já causa bastante burburinho entre os fãs de Eisner e Miller.
Conseguirá o autor de “O Cavaleiro das Trevas” salvar tão esperada adaptação? Será ele condenado à fogueira? Não percam o próximo episódio...

Assita ao trailer de “The Spirit”


 


Watchmen 

O segundo título, “Watchmen”, com estréia prevista para 6 de março nos EUA, tem diversas coisas em comum com “The Spirit”.
O diretor Zack Snyder, responsável pela bela adaptação da HQ “300”, de Frank Miller, também parece ter se preocupado bastante com a fidelidade à minissérie criada pelo quadrinista-escritor inglês Alan Moore.
Este último, por sua vez, detém o status de maior roteirista de HQ’s da atualidade.
Seus trabalhos já se tornaram clássicos e alguns já tiveram suas versões cinematográficas, como “A Liga Extraordinária” e “V de Vingança”.
Moore, no entanto, nunca ficou muito satisfeito com os resultados finais dessas adaptações. Não é para menos.
A grande característica de Alan Moore é que, apesar dos contextos fantásticos de suas histórias, há um aprofundamento psicológico reservado aos seus personagens e o aspecto humano que envolve as tramas nos leva quase a acreditar que seus roteiros poderiam ser de fato acontecimentos reais. E é aí que produtores e diretores pisam na bola quando adaptam seus trabalhos para o cinema.
“V de Vingança” (a HQ), por exemplo, é uma história complexa, que envolve uma vasta gama de personagens totalmente diferentes uns dos outros, o que confere à obra um ar de novela. Aliás, boa parte do argumento foi baseado na clássica novela do escritor inglês George Orwell, “1984”.
“V de Vingança” nos apresenta um futuro próximo, sombrio, onde a Inglaterra, após um golpe de Estado, mergulha no mais completo fascismo.
Lá estão diversos elementos familiares da obra de Orwell: o “Líder” pode ser a versão do “Grande Irmão”; o controle absoluto da informação, as lavagens cerebrais, a proibição da prostituição e de oposições também fazem parte do mundo de “1984”. Só que na adaptação para o cinema, produzida pelos irmãos Andy e Larry Wachowski (responsáveis pela série Matrix) e dirigida por James McTeigue, esse humanismo foi para as cucuias.
Apesar de manterem o contexto original, várias personagens importantes na trama de Alan Moore desapareceram ou foram alterados em seus contextos originais, como Evey Hammond (interpretada por Nathalie Portman). Enquanto na HQ a garota é órfã e é salva logo no início da história pelo obscuro “V” enquanto tentava se prostituir para sobreviver, no filme ela é uma secretária e só vem a ter contato com o terrorista após um atentado à TV estatal inglesa.
Os cenários e o clima do filme também não são tão sombrios como na história desenhada por David Lloyd.
Portanto, haveria motivos de sobra para Moore rechaçar a idéia de mais uma adaptação de uma obra sua. A idéia de filmar "Watchmen" não é nova. O diretor Terry Gilliam (ex-Monty Python) chegou a procurar o autor, nos anos 80 (a HQ foi lançada originalmente em 1985) para propor sua adaptação. Moore disse que seria impossível: "Há coisas em 'Watchmen' que só funcionam nos quadrinhos".
Assim como em “The Spirit”, a responsabilidade em adaptar “Watchmen” é pesada. Para se ter uma idéia da importância dessa história escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, basta lembrar que foi a única HQ presente na famosa lista dos 100 melhores romances eleitos pela revista Time desde 1923.
Além de vários prêmios Kirby e Eisner, também recebeu um Prêmio Hugo, voltado á literatura, sendo a única Graphic Novel a receber tal honraria.
Portanto, dá para imaginar a apreensão dos fãs de Moore e de sua aclamada minissérie.
A obra conta a história de um grupo de heróis mascarados surgido nos anos 40, que se intitulava “Minutemen” (Homens-Minuto, sempre prontos para o combate). No entanto, o autor mostra esses heróis como pessoas normais, com seus desvios de caráter, seus sonhos, desejos e fraquezas e nos apresenta sua visão de como seria o mundo se esses heróis mascarados, que se proliferam como baratas nas bancas de jornais, revistarias e livrarias, existissem de verdade.
Entre as possibilidades abordadas por Alan Moore, está a vitória dos norte-americanos na guerra do Vietnã, graças ao Dr. Manhattan e seus poderes.
A animação da Disney/Pixar, “Os Incríveis” (2004), pode ter baseado seu argumento no texto do roteirista inglês.
Como em “Watchmen”, à certa altura dos acontecimentos um decreto do governo põe fim às atividades dos justiceiros mascarados. Na HQ de Moore e Gibbons, porém, dois desses vigilantes continuam na ativa, trabalhando para o governo americano: o Comediante e Dr. Manhattan, este último com super poderes capazes de dizimar todos os heróis da Marvel e DC Comics juntos.   Um terceiro mascarado, o atormentado e sinistro Rorschach, continua agindo na marginalidade.
A trama inicia-se de fato quando o Comediante é assassinado e Rorschach passa a investigar o crime, isso já nos anos 80.
Pelos trailers já divulgados, parece que finalmente Alan Moore pode respirar aliviado. Algumas cenas lembram bastante a premiada minissérie e, a julgar por tais cenas, parece que o roteiro original também foi mantido. Se assim for, deverá ser um grande filme, tão grande quanto sua base de inspiração.
Além disso, o diretor Zack Snyder já tem bons antecedentes pela adaptação de “300”, de Frank Miller (que, alías, Moore não gostou).
Por fim, esperemos que essa união de talentos do cinema e das HQ’s produzam obras tão competentes quando algumas das grandes adaptações de obras literárias para a telona. E não se trata apenas de adaptações de histórias de super-heróis para puro entretenimento. “The Spirit” e “Watchmen” são obras-primas dos quadrinhos e portanto merecem tanto respeito como as principais grandes obras da literatura universal.

Assista ao trailer de “Watchmen”

Nenhum comentário:

Postar um comentário